domingo, 26 de janeiro de 2014

Como o Pré-Carnaval reinventou as ruas

Unidos da Cachorra foi primeiro bloco a desfilar no atual circuito oficial do Pré-Carnaval

A tradição chega cedo. É no raiar do ano, antes da primeira batida de surdo ou do primeiro estremecer do tamborim, que o Pré-Carnaval aponta em Fortaleza. Pelos quatro cantos da cidade, a folia invade ruas, praças e qualquer outro palmo de chão em que se possa pular, transformando o medo em confete, sorrisos e fantasias. Ocupando a solidão com sambas e marchinhas. É na brincadeira do Pré-Carnaval que o fortalezense aprende: é possível preencher as ruas da cidade com alegria.

“É uma expressão muito importante de uma nova vivência da cidade que está sendo construída na qual a rua faz parte. E não só a rua, mas o acesso livre à rua”, pontua o historiador e professor da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), Américo Souza. Para entender a construção do Pré-Carnaval, no entanto, é necessário compreender as mudanças pelas quais passou o próprio Carnaval, aponta Américo.

Segundo o historiador, até a década de 1940, o Carnaval de Fortaleza era uma festa essencialmente de rua. Com o crescimento dos clubes, a folia migrou para o espaço privado até, na década de 1980, mudar-se para as praias do litoral. No intervalo entre os dois, surge o Pré – uma forma de fazer Carnaval enquanto os foliões ainda estavam na cidade.

“As pessoas estavam a fim de brincar Carnaval, mas não tinha Carnaval em Fortaleza”, lembra o carnavalesco Dilson Pinheiro, 57 anos. Considerado como o primeiro dos blocos do Pré, o Periquito da Madame iniciou suas atividades, em 1980, nas dependências de um clube. Foi preciso nascer o Que Merda é Essa?, anos depois, para que o Pré-Carnaval tomasse as ruas. “Foi o Merda que primeiro foi pra rua. As pessoas queriam uma coisa mais popular” afirma Dilson, antigo brincante do bloco.

Com o sucesso do formato, outras agremiações surgiram, povoando diferentes bairros com a festa. “Todo mundo ia para onde tinha a melhor festa, independente de onde fosse”, lembra a contadora Christiane Ramos, 39 anos. Ela brinca o Pré desde a adolescência e lembra que, através da festa, era possível desbravar a cidade. “A gente andava no meio da rua e se sentia livre, sem medo. Essa liberdade do meio da rua é o que mais combina com o Pré-Carnaval”.

RENOVAÇÃO

A festa resistiu aos anos e ganhou força, a partir de 2006, com o apoio da Prefeitura de Fortaleza. Novos blocos foram criados e o estilo da folia, renovado, apresentando a brincadeira na rua para novas gerações. “A molecada nova que está aí levando a coisa é uma geração que foi criança quando a cidade já estava violenta e cresceu nos apartamentos. Tiveram uma infância onde a rua foi negada. Essa geração está abraçando o Pré e querendo ir pra rua”, explica o historiador Américo Souza.

Hoje, de acordo com Américo, o Pré-Carnaval pode ser considerado como um dos maiores eventos de rua da cidade. “Antes, você só ocupava a rua em procissões ou grandes protestos políticos. O que o Pré-Carnaval fez mostrar que é possível ir pra rua. E ocupar a rua com festa”, afirma. E que deve continuar no calendário oficial de Fortaleza pelos próximos anos. “Não dá mais pra voltar atrás”.

60

BLOCOS, DOS cerca de 100 que a Prefeitura estima que existam em Fortaleza, recebem apoio financeiro da Prefeitura, por meio de edital

720

MIL REAIS é o valor destinado pela Prefeitura de Fortaleza para as agremiações que se apresentarão no Carnaval

O Pré que contagia o Carnaval

Em assuntos carnavalescos, Fortaleza nunca foi uma Olinda, um Rio de Janeiro ou um Salvador. Mas, se, nessas cidades, foi o próprio Carnaval que fez surgir a folia antecipada; na capital cearense, é o Pré que tem, cada vez mais, fortalecido e renovado a festa.

“A gente sempre teve Carnaval. O que aconteceu é que o Pré-Carnaval chamou atenção para o Carnaval”, destaca o historiador e professor da Unilab, Américo Souza. Com a intervenção da Prefeitura na organização do Pré-Carnaval, na década passada, o próprio Carnaval também passou a ser alvo de políticas públicas. Neste ano, os editais da Secretaria da Cultura de Fortaleza (Secultfor) destinaram uma verba de R$ 720 mil para agremiações que se apresentarão no Carnaval.

Para Mateus Perdigão, um dos organizadores do bloco Luxo da Aldeia, a folia antecipada trouxe novo estilo às festas carnavalescas. Desde 2007, o bloco se apresenta no Pré. Há dois anos, também passou a sair nos sábados e nas segundas de Carnaval. Neste ano, tocará na abertura da programação oficial do Carnaval de Fortaleza.

“O Carnaval não se realiza por causa das pessoas do Pré, mas o formato mais descentralizado, nos bairros, do folião ganhar a rua, está ganhando força no Carnaval e o Pré tem sua contribuição”. O músico acredita que hoje o público que acompanha o bloco no Pré e durante o Carnaval seja “praticamente o mesmo”. “Muita gente está ficando e vendo que aqui também tem opções”. (LC)

Fonte: O POVO ON LINE